top of page
  • Foto do escritorObservatório das Desigualdades

INTERSECCIONALIDADE



Texto construído a partir da colaboração de Juliana Cristina Teixeira (Professora da UFES) Para ver ou ouvir clique no vídeo acima!

Ainda que a academia tenha o poder de dar nomes aos conceitos e sistematizá-los, é importante considerarmos que esses conceitos também se formam na sociedade, nos movimentos políticos e sociais. Ao falarmos de um conceito, é necessário abordá-los considerando sua relação com os fenômenos complexos que acontecem na sociedade, e que dão origem e consolidam conceitos.

Por isso, antes de explicar o que é a interseccionalidade, iniciamos uma viagem pelo Estados Unidos, no ano de 1851, na cidade de Akron (Ohio). Lá, aconteceram várias convenções pelos direitos das mulheres. Essas convenções pautavam principalmente os direitos das mulheres brancas, sem considerar as especificidades das mulheres negras, que tinham sido escravizadas durante séculos. Em 1851, em uma dessas convenções, Sojourner Truth fez um discurso muito potente, e que se tornou um registro histórico de pioneirismo. Nele, ela chamou atenção para a importância de debater e pensar que não existe só opressão de gênero, e não existe apenas uma determinada opressão. Mas que elas precisam ser interseccionadas.

Sojourner Truth, que era uma mulher negra que nasceu em condição de escravizada, em Nova York, no ano de 1797, foi uma abolicionista e ativista dos direitos das mulheres negras. Em 1851, ela fez parte de uma dessas convenções. Consta que esses eram espaços que ela sempre frequentava, embora não fossem espaços acolhedores para ela. Em sua participação, ela sempre chamava atenção para a necessidade de pautar o enfrentamento das lutas pelos direitos das mulheres negras. Em um desses discursos ela questionou: “Ninguém nunca me ajudou a subir nas carruagens.... ...e nem pular poças de lama... E eu não sou uma mulher?”. Dessa forma, ela questionava a construção patriarcal da mulher como sexo fragilizados, fazendo um enfrentamento da noção de mulher universal, ao identificar as conexões entre raça e gênero. Ela também evidencia, em seu discurso, que ela teve treze filhos, e que viu a maioria ser vendido para escravização. Assim, inclusive nos debates sobre maternidade, é preciso englobar essas histórias dessas mulheres que não tiveram direito de maternar os seus próprios filhos.

Indo um pouco mais à frente, nas décadas de 1960/70, os movimentos de mulheres negras nos Estados Unidos passaram a articular as lutas contra as opressões de raça, gênero, sexualidade e classe. Em 1967, um coletivo de mulheres negras, chamado Combahee River Collective, assina um manifesto se comprometendo a pautar essas intersecções entre opressões de raça, de gênero, sexualidade e de classe.

Além dos registros deste manifesto do coletivo (de mulheres feministas negras estadunidenses e que atuaram na década de 70), se nos voltarmos à academia, identificamos a contribuição da maravilhosa Lélia Gonzalez. Brasileira, Lélia, do seu lugar de doutora em antropologia social, estabeleceu, por volta de 1982/1983, debates interseccionados entre racismo e sexismo na sociedade brasileira. Ela vai chamar atenção não apenas para como a classe estrutura nossa sociedade brasileira, mas, como raça e sexo dão fundamento a essas estruturas e são, enquanto eixos de opressão, apropriados pelo capitalismo. Lélia Gonzalez trabalha de modo muito original esses debates, e é uma das precursoras das construções que vão culminar no conceito de interseccionalidade. Entretanto, porque o Sul Global foi negligenciado nas formações dos conceitos, ela não se torna uma autora, naquele momento, reconhecida por sua contribuição à discussão do conceito de interseccionalidade. É importante, então, que a gente sempre faça essa reparação histórica, trazendo Lélia Gonzalez para este debate. Além de Lelia González, no Brasil são importantes as contribuições de Beatriz Nascimento e Sueli Carneiro, para a reflexão sobre interseccionalidade.

Ainda na década de 1980, Audre Lorde e bell hooks também foram pensadoras que bradavam contra o feminismo que só levasse em conta a desigualdade de sexo.

Depois de apresentar o contexto, apresentamos o conceito. Kimberlé Crenshaw, teórica feminista negra estadunidense, foi quem sistematizou o conceito, em 1989. Ela sintetizou essa reflexão histórica para construir uma ferramenta potente, tanto de análise de como essas desigualdades sociais operam, como também de formas para o enfrentamento dessas desigualdades. Crenshaw define interseccionalidade como sendo a articulação de eixos de poder e de discriminação que estruturalmente produzem opressão, desatacando os eixos de racismo, patriarcado e a estrutura de classe. Atualmente falamos em cisheteropatriarcado, adicionando a esses eixos as categorias de identidade de gênero e de sexualidade, além de outros eixos que se articulam, produzindo opressões.

O fato de Crenshaw ter mencionado apenas três eixos não quer dizer que se esgotem as possibilidades, uma vez que ela afirma que não intencionou produzir uma teoria totalizante de identidade. Assim, é possível que a gente adeque a ferramenta ao contexto de análise. Pensando sobre alguns desses desdobramentos, eles nos ajudam a pensar como que as mulheres negras estão em maiores condições de precariedade e vulnerabilidade social. E, ainda, como também existe uma solidariedade muito específica dessas mulheres negras com os homens negros, que estão em condições socioeconômicas inferior as mulheres brancas, e isso precisa ser pautado. Sendo que são os homens negros que morrem simplesmente por serem homens negros, há muitos anos.

Sendo assim, é preciso pensar raça de maneira conectada com gênero, para a gente pensar na formação das nossas desigualdades sociais. Inclusive, a Crenshaw discute que é possível analisar a interseccionalidade como uma ferramenta para visualizarmos como a estrutura é feita, mas também como uma ferramenta política para observar momentos políticos feministas e os movimento antirracismo que, quando não fazem essas intersecções, acabam contribuindo para negligenciar o enfrentamento da condição de violência que as mulheres negras se encontram estruturalmente. Um outro desdobramento da discussão é o que remete ao contexto das políticas públicas, quando a interseccionalidade, enquanto uma ferramenta, inspira as políticas que “transversalizam” raça, gênero e classe.

Por fim, o conceito de interseccionalidade representativa ajuda a pautar como a representatividade da mulher negra nos espaços é um debate muito importante. Como diz a Carla Akotirene, o próprio coração do conceito de interseccionalidade é o da mulher negra. Logo, ao mesmo tempo que ele mostra essa vulnerabilidade estrutural da mulher negra, também mostra o seu poder enquanto agente na construção de uma ferramenta potente, e que deve ser considerada no enfrentamento das desigualdades sociais.

Quer saber mais? Leia:

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019. 152 p. (Feminismos Plurais). Coordenação de Djamila Ribeiro. Disponível em: https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/1154/o/Interseccionalidade_%28Feminismos_Plurais%29_-_Carla_Akotirene.pdf?159923935. Acesso em: 19 nov. 2020.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, [S.L.], v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0104-026x2002000100011.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. 262 p. Tradução Heci Regina Candiani.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje: Anpocs, São Paulo, p. 223-243, fev. 1984. Anual. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf. Acesso em: 19 out. 2020.

hooks, bell. Feminism is for everybody. Cambridge: South End Press, 2000.

LORDE, Audre. Age, race, class and sex: women redefining difference. In: LORDE, Audre. Sister outsider: essays and speeches. Freedom: Crossing Press, 1984, p. 114-123.

TRUTH, Sojourner. NÃO SOU MULHER? 1851. Disponível em: https://www.feminist.com/resources/artspeech/genwom/sojour.htm. Acesso em: 19 out. 2020.




81 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page