O texto a seguir foi construído a partir da colaboração da Anabelle Carrilho (assistente social e professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília. Integrante dos grupos de pesquisa Trabalho, Educação e Discriminação – TEDis e do grupo Gênero, Política Social e Serviços Sociais – GENPOSS). Para ver ou ouvir clique no vídeo acima!
O conceito de feminização é muito importante no debate público das políticas sociais e no enfrentamento das desigualdades de gênero, raça e classe que estruturam a formação social brasileira.
Para introduzir o tema, é importante mencionarmos algumas referências notáveis para a discussão do conceito. Como é o caso da professora Silvia Yannoulas, que se dedica a essa discussão desde a década de 1990. É com base no pensamento da autora que desenvolvemos o presente verbete.
Com base em referências sobre o tema, podemos entender a feminização como um conceito difuso, mas de compreensão e discussão necessária. Essa ideia faz alusão à diversidade de fenômenos que o termo pode designar, descrever ou explicar. Podemos fazer um paralelo, por exemplo, com a feminização do envelhecimento ou a feminização da epidemia de HIV/AIDS, que designam o aumento de mulheres, a primeira entre a população idosa, e a segunda entre pessoas vivendo com HIV/AIDS. Há, ainda, a feminização da pobreza, que se refere às características diferenciadas de precarização, perda de renda e pauperização das mulheres.
O enfoque que trazemos no verbete prioriza a feminização do mercado de trabalho, ou seja, na análise da inserção e impactos causados pelas e sobre as mulheres nos distintos espaços profissionais. no entanto, acreditamos que as reflexões e definições realizadas são aplicáveis à feminização em sentido amplo.
A partir dos exemplos mencionados anteriormente, é possível perceber dois significados fundamentais da feminização, apontados por Silvia Yannoulas. Um primeiro significado, quantitativo, que se refere ao aumento de pessoas do sexo feminino (no mercado de trabalho, em determinadas profissões, entre a população idosa ou entre pessoas vivendo com HIV/AIDS, por exemplo). E um segundo significado, qualitativo, muito mais complexo, que se refere às transformações vinculadas à imagem simbólica do feminino, construída socialmente. Essa imagem simbólica opera mudanças significativas nesses espaços, às vezes com desregramentos, ou às vezes apenas reproduzindo as desiguais relações de gênero.
A feminização acontece, portanto, quando um fenômeno ou processo social toma feição feminina, quantitativa e qualitativamente. O feminizar-se só é possível então pela constituição de uma identidade feminina, construída em contraposição a uma identidade masculina.
Esta constituição identitária se dá fortemente no século XIX, sendo a identidade feminina pautada em duas argumentações. A primeira, a ecológica, que estaria amparada na função reprodutiva biológica e social que as mulheres deveriam desempenhar no espaço doméstico e privado. Ela se desdobra em uma argumentação essencialista, de que tal função reprodutiva conferiria às mulheres características consideradas naturais, como: fraqueza, irracionalidade, dependência e afetividade.
Por outro lado, a identidade masculina estaria ligada a uma função política, produtiva e pública dos homens, para as quais eles seriam naturalmente dotados de características como agressividade, racionalidade, independência e força.
Ao longo do século XX, esta construção identitária foi amplamente refutada e desconstruída pelas feministas, principalmente por meio da categoria gênero. Com base nela, foi questionado esse binarismo contido na correlação entre diferenças biológicas de fêmeas e machos e as construções sociais de ser mulher e homem (feminino e masculino).
Ainda assim, mesmo com muitas conquistas, a divisão sexual do trabalho continua a operar contemporaneamente, ao designar trabalhos e funções tipicamente femininos, a serem exercidos pelas mulheres, ligados às atividades domésticas e de cuidados. E, aos homens, trabalhos e funções relacionados ao mundo dito produtivo, relacionado ao público e político. A divisão sexual do trabalho não apenas opera essa separação, mas também hierarquiza tais funções: aquelas tipicamente femininas valem menos em termos de prestígio e salários e as masculinas valem mais, estando em permanente contradição.
Relações de gênero e divisão sexual do trabalho são categorias que integram outros verbetes, e que são fundantes para compreender o conceito de feminização e suas implicações teóricas e políticas, centrais para os estudos feministas e para as políticas sociais.
O fato é que estabelecer a importância da discussão e definição de um conceito de feminização que combine cada vez mais esses fatores quantitativos e qualitativos, é fundamental para visibilizar na agenda pública não apenas as demandas de políticas para as mulheres, mas de políticas de gênero, que, segundo a professora Lourdes Bandeira, são aquelas capazes de alterar estruturalmente as desigualdades histórica e socialmente construídas entre os sexos.
Quer saber mais? Leia:
BANDEIRA, Lourdes. Brasil: Fortalecimento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres para avançar na transversalização da perspectiva de gênero nas políticas públicas. Brasília: CEPAL/SPM, 2005. Disponível em: http://transformatoriomargaridas.org.br/sistema/wp-content/uploads/2015/02/Genero-no-PPA-2004-2007.pdf.
CARRILHO, Anabelle. Invisíveis, mas necessárias: mulheres trabalhadoras da mineração. Curitiba: Appris, 2021.
CARRILHO, Anabelle; RODRIGUES, Marlene Teixeira. Feminização do mercado de trabalho e política social: análise a partir da mineração. Caderno Espaço Feminino. Uberlândia, v.30, n.2, p. 193-210, jul.- dez. 2017. Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/39001
HIRATA, Helena et al (Org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: UNESP, 2009.
YANNOULAS, Silvia Cristina (Coord.). Trabalhadoras: Análise da Feminização das Profissões e Ocupações. Brasília: Abaré, 2013.
YANNOULAS, Silvia Cristina. Feminização ou Feminilização? Apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis. Brasília, v.2, p. 271 – 292, 2011. Disponível em: http://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/1368/1583.
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